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sábado, 2 de fevereiro de 2013

Como Santa Maria conseguirá superar o estigma da tragédia em boate

Por trás da dor e do luto, cidade terá de buscar formas para não ficar conhecida pelo episódio na Kiss
Como Santa Maria conseguirá superar o estigma da tragédia em boate Lauro Alves/Agencia RBS
Para superar as marcas da tragédia, Santa Maria terá de recuperar o orgulho por suas qualidades Foto: Lauro Alves / Agencia RBS
Letícia Costa e Marcelo Gonzatto

Por trás da dor e do luto causados pela tragédia que se abateu sobre Santa Maria, surge outra inquietação: há formas de não ficar marcada pelo estigma de "a cidade da tragédia na boate"?
Orgulhosa por qualidades como a excelência da universidade, a baixa incidência de crimes, a importância logística, o peso econômico e militar, a população terá de se acostumar a olhares de pesar. Mas o tempo e a reação adequada diante do que aconteceu são considerados fundamentais para trazer de volta o clima da saudosa Santa Maria da Boca do Monte, cidade com o apropriado título de Coração do Rio Grande.
— A fala ainda está muito em cima da tragédia e essas palavras ruins vão marcando. A cidade ficou conhecida no mundo de maneira terrível e terá de achar uma forma de transformar isso. No momento não há o que dizer, por isso os movimentos, as caminhadas, são uma forma bonita de tocar no assunto — avalia a psicanalista Luciana Portella Kohlrausch, moradora de Santa Maria.
Em um segundo momento, a aposta de especialistas para renovar o espírito e a imagem da cidade é, em vez de tentar esquecer a tragédia, transformá-la em ponto de partida para projetos de reforma na legislação, reflexão acadêmica, criação urbanística e união política. A excelência no Ensino Superior, já consolidada, é um dos caminhos para mostrar a força de Santa Maria e transformar olhares de pena em admiração. A cientista política Céli Regina Pinto, do departamento de História da UFRGS, ressalta a importância do município para o Estado e vê o conhecimento como uma saída para a cidade se reerguer e servir de exemplo:
— Todo conhecimento que Santa Maria tem na universidade pode produzir reflexão de como nós, brasileiros, lidamos com o cotidiano. Após o momento de luto público, podem vir grandes soluções. Não justifica que tantos jovens tenham morrido, mas a cidade reagirá e pode ser a primeira a ter boates com alta qualidade e segurança.
Na visão de Lusa Silvestre, diretor de Criação da agência publicitária WMcCann e roteirista de filmes nacionais, a fama negativa poderá mudar com o passar dos anos. Ele diz que é preciso buscar alívio no que a cidade tem de melhor.
Por enquanto, é em uma construção que a população junta forças para superar a dor. A prefeitura disse que pretende desapropriar a área onde funcionava a Kiss para construir um memorial às vítimas.
— Deve haver a lembrança da importância de fazer as coisas com responsabilidade — ressalta o professor da Faculdade de Arquitetura da UFRGS Benamy Turkienicz.
Mudanças como a consolidação de boates mais seguras podem ser outra saída para Santa Maria ganhar forças. A professora Céli Regina comenta que todos querem achar os culpados, mas só isso não resolverá o problema que causou tamanha perda. Uma das medidas necessárias é recuperar a unidade política entre diferentes níveis de governo, fraturada por trocas de acusações.
— Tem de haver planejamento para que a tragédia não se repita nunca mais — diz Benito Santiago Martinez Gonzalez, secretário de Emprego e Desenvolvimento Sustentável de Cubatão (SP), cidade também marcada por uma tragédia (leia na página ao lado).
Santa-marienses que ainda vivem na cidade ou que estão longe dela manifestam-se sobre a tragédia na Kiss:
"Cá de longe estou com o coração apertado. Certas coisas ultrapassam a capacidade de compreensão. Que o esforço de superação seja transformador para a cidade."  Carlos Vergara, artista plástico
"A forma de homenagear as pessoas que partiram, além de buscar a justiça, é sendo feliz nesta existência." Carmo Dalla Vecchia, ator
"Alimento a forte esperança de que o sacrifício da juventude tragada pela tragédia há de ser a semente de uma nova Santa Maria e de uma nova humanidade. Acredito que a dor há de iluminar o amor. Então, é hora de levantar a cabeça, olhar para o alto e seguir em frente, que o caminho precisa ser caminhado." Padre Lauro Trevisan, escritor
"Cada jovem, cada pessoa que faleceu nessa tragédia deixou um legado de coisas boas que realizaram em vida. Acho que todas as famílias devem buscar, nas lembranças da alegria e das realizações desses rapazes e dessas moças, a força necessária para superar esse momento tão difícil e reencontrar a paz." José Mariano Beltrame, secretário de Estado de Segurança do Rio de Janeiro
"O ser humano possui incríveis capacidades de se reinventar e reconstruir a todo tempo e, nos últimos dias, todos puderam constatar: a tragédia não minou crenças e forças. Ao contrário, despertou na população santa-mariense coragem para se fazer forte e solidária. Que este exemplo de compromisso com a comunidade e de solidariedade siga com os santa-marienses para sempre, como legado de homens e mulheres que souberam — com a ajuda de todos os brasileiros, de Norte a Sul do país — enfrentar com competência técnica e amor a maior provação de sua história." Rafaela Zanella, Médica e Miss Brasil 2006
''Não há nada mais santa-mariense do que reagir. Temos a natureza insubmissa da juventude que acolhemos. Santa Maria honra suas vítimas sendo a cidade inquieta e alegre que sempre foi.'' Marcelo Canellas, jornalista
"Não podemos se entregar, gaúcho não se entrega." Eros Grau, ex-ministro do STF
"Não podia estar mais triste com o que aconteceu em Santa Maria. Meu coração chora de longe e sofre junto de todos. Mas estou muito orgulhosa da minha cidade que se mostrou unida, com pessoas extremamente humanas e solidárias. Com atitude de compaixão acima de tudo. Que Deus conforte o coração dos que ficam." Bianca Castanho, atriz
"A UFSM espera que, com suas maiores riquezas (estudantes e servidores), possamos encontrar os caminhos para superar esses momentos." Felipe Martins Müller, reitor da UFSM
Goiânia venceu as marcas de um desastre
Dezenove gramas de um pó branco, capaz de emitir um brilho azulado no escuro, transformaram-se em um dos maiores fardos da História de Goiânia. A liberação do material radioativo Césio 137 por catadores de um ferro-velho provocou o maior acidente radioativo do país, matou quatro pessoas, afetou centenas e deflagrou uma onda de discriminação contra a população local. Passados 25 anos, a cidade superou o cruel apelido de "Goiâniabyl" — referência à cidade russa de Chernobyl, onde um ano antes a explosão de um reator nuclear matou pelo menos 15 mil pessoas.
Para vencer o estigma, artistas de várias regiões do país se engajaram em uma série de iniciativas. Uma das mais emblemáticas foi a campanha Eu Amo Goiânia, Goiânia me Ama. Uma música composta e interpretada pelo cantor mineiro Moacyr Franco para celebrar a cidade que ficou conhecida em todo o país.
— Quando soube da tragédia em Goiânia, decidi que precisava ir para lá. Fiz a música e fiquei um mês ajudando a dar informações à população. Agora, queria pedir à população de Santa Maria que mantivesse a solidariedade — diz Franco.
O jornalista e radialista goiano Amauri Garcia, 50 anos, tinha 24 à época. A atual mulher dele morava a apenas duas quadras de onde a cápsula com Césio 137 foi violada e o chamado brilho da morte começou a fazer vítimas. Por sorte, não sofreram nenhum tipo de sequela.
— Houve um esforço de toda a sociedade nos meses seguintes para promover shows, eventos, mostrar que não havia problema em beber água — conta Garcia.
Embora sobreviventes e familiares de vítimas ainda reclamem uma maior atenção do poder público em relação a tratamento médico e indenizações, a capital de Goiás conseguiu recuperar o brilho próprio.
Cubatão superou um trauma
Não foi apenas uma situação que deixou um dos municípios da Baixada Santista marcado e conhecido mundialmente por um aspecto negativo. Foram anos de poluição causada pelo polo industrial e 93 vidas perdidas em uma explosão de um duto da Petrobras que consolidaram o carimbo indesejado de Cubatão Vale da Morte. Com casos de bebês anencéfalos (sem cérebro) acima da média e com o incêndio em fevereiro de 1984 na favela nos barracos da Vila Socó, a cidade paulista de 118 mil habitantes teve, e ainda tem, muito trabalho para virar a página.
— Todas as marcas negativas pegam mais do que as positivas. A alcunha "Cubatão Vale da Morte" percorreu o mundo. Desde aquela época foram feitos esforços para gerar trabalho, investimento e principalmente agenda positiva — observa o secretário de Emprego e Desenvolvimento Sustentável de Cubatão, Benito Santiago Martinez Gonzalez.
Na década de 1980, Gonzalez trabalhava no polo industrial da cidade. Ele a viu virar Vale da Morte e participou do recomeço, que a tornou exemplo de recuperação em níveis de poluição. A cidade foi convidada a participar no ano passado da Conferência das Nações Unidas sobre Desenvolvimento Sustentável, a Rio+20, como um exemplo a ser seguido.
O secretário diz que, infelizmente, não há como fugir das informações, imagens e vídeos postados na internet atrelados ao histórico ruim do município. No entanto, medidas práticas como a reurbanização da antiga Vila Socó, hoje bairro Vila São José, e a constante medição da qualidade do ar no centro da cidade, contribuem para dar mais segurança.
— Até hoje convivemos com esse fantasma e a qualquer novo episódio ficamos assustados, mas nos consideramos uma cidade que venceu o estigma de Cubatão Vale da Morte. Recebemos visitas de universidades e convites para eventos. Somos um caso positivo de união da força pública, das indústrias e da sociedade — acredita Gonzalez.
Zero Hora

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